quinta-feira, 17 de dezembro de 2009

Deguste Vila Joya (post de Luis Bento dos Santos)

O Luis Bento dos Santos, que está com dificuldades em conseguir inserir este post, pediu-me que o fizesse. aqui vai:

Como as alterações climáticas passámos a ter apenas duas estações, vou organizar os meus comentários aqui no Deguste em dois blocos: Impressões de Verão e Impressões de Inverno. Assim poderei preguiçosamente escrever só sobre o que os sentidos registaram com relevância, e não preciso de ser exaustivo… acresce, que fica mais poético – mas nem por isso deixarei de classificar as experiências havidas, pois isto de comidas e vinhos só ganha brilho e vida própria se for partilhado!

Impressões de Verão

Jantar em Vila Joya, Agosto de 2009 rating: 19/20

Há mais de uma dúzia de anos que eu e a Elsa, acompanhados de amigos, visitamos ritualmente, no Verão, o jantar de Gala das 5ªs feiras do Vila Joya. É uma ideia magnífica, ou não fossem os rituais, como escrevia Saint-Exupery, das melhores coisas do Mundo – pois antes de ocorrerem já estamos a antecipar o prazer!

Já lá vão os tempos em que era obrigatório fato e gravata; hoje em dia a simples camisa é perfeitamente apropriado. Concluiu-se assim que, ao longo dos tempos, a indumentária evoluiu aqui na inversa proporção da qualidade da degustação …

Preocupo-me sempre, neste caso, em escolher convivas que sejam discerning, tal como quando jogo ténis a pares procuro parceiros de qualidade – o resultado e a experiência dependem também (e bastante!) de com quem se dança a música, especialmente quando ela promete ser celestial. Assim, parte do que vou referir resulta de apreciações de terceiros que chamaram a atenção para nuances de que eu não me teria apercebido, embora tudo o que vou referir tenha sido conscientemente registado por mim próprio.

… Preliminares

A recepção pelo Sr. João com a sua casaca negra e a sua transbordante simpatia e critério posicionam de imediato o restaurante. A minha mesa, sempre a mesma, permite desfrutar do cândido entardecer sobre a falésia e o mar. Assim, enquanto as cores quentes do fim do dia se vão transformando progressivamente em cinzas e negros profundos pontilhados por estrelas longínquas – e algumas vezes no passado, não por acaso, acompanhados pela lua cheia e seus reflexos de prata no mar – a expectativa pela chegada dos amuse – bouche vai crescendo… na mesa uns aparadores discretos valorizam os guardanapos lindamente montados como um smoking branco com uma flor natural dourada na lapela. Os copos Wine Star de cristal fino preparam-nos para um jantar de excepção.

As ofertas do Chefe

Surpreendentemente foram três.

Começámos com uma ostra falsa molecular com gelatina do mar e caviar. A primeira parecia um ovo de perdiz branco numa pequena colher e a outra, que se lhe seguia uma gelatina verde de algas com caviar de esturjão. Não se podia começar melhor: o caminho estava traçado e lembrou-me o poema de António Machado:

“…Caminante no hay camino

sino estelas en la mar…”

Ou seja, começávamos com sugestões de maresia, nada de muito definitivo, e este caminho continuaria depois pelas outras ofertas sempre com texturas etéreas, que nos levavam a procurar a essência à volta da qual se estruturava o conceito de cada pequenina entrada. Prosseguimos com gelado de yutzu com agrião de ostra - o efeito, aliás, neste caso confessado, é o do gin fizz e o seu gelo moído, mas o perfume atira-nos para a espuma do mar – e uma trufa de vieiras com espuma de wasabi (nota 20). Continuámos com uma oferta quadrupla: um macaron (tipo Ladurée) de enguia com mousse de salmão (nota 20); uma truta salmonada em tempura com ovas de truta (nota 20) um grissini com uma folha enrolada de sashimi de tuna toro (nota 20); e uma batata com chouriço ibérico (nota 17), mas a fechar bem, com a gordura salgada na sequência das notas subtis de maresia e de texturas suaves entre o gelatinoso, o croustillant e o diluível, absolutamente fascinantes. Ouf! Tudo isto acompanhado de champanhe Brut Merveille do português De Sousa (10% de pinot), uma ligação irrepreensível em que a suave acidez do vinho, masculino, mineral mas elegante e delgado na boca, a lembrar os vintage Krug, e a bolha fina e surpreendentemente concentrada no meio do copo complementava na perfeição a insustentável e sublime essência da experiência gastronómica.

“E ainda não começámos …”alguém comentou.

… As entradas

Começámos com os caranguejos com melão e espuma de chá príncipe. Extraordinária combinação, ligeiro, sofisticado, saboroso, parece-nos ver aqui a elevação trazida pelo sub-chefe italiano Mateo, como o melão rosado italiano parece indicar.

Continuamos, sempre acompanhados agora de um muito bem escolhido Quinta das Marias encruzado de Dão 2008, com fígado de pato salteado com figo e gelado de fígado de pato: sinal da modernidade trazida pela pesquisa de Adriá, que as petazetas pouco presentes (felizmente) sugerem. Interpreto como a sofisticação necessária: como fazer um menu destes, sem trufas e sem foie? E prosseguimos com perna de rã Sot l’y laisse, (realmente, e talvez pela sua localização na ave, muito tolo não come esta delicadeza, ainda melhor que a própria coxa) gema de ovo e molho Mignonette – aqui eu sou suspeito pois adoro pernas de rã, mas, tal como, enquanto professor universitário sentia que a escala era curta para classificar certas coisas, e um 20 aqui é malgré lui, redutor. É que a emoção não tem quantificação possível: não é perfeito, como uma obra dirigida por Karajan mas é muito mais que isso – original, pequenino mas denso e complexo, ossito que estrutura algo maior do que se inspira possa suportar, tal como o nosso atlas suporta o peso da nossa superior e inigualável inteligência.

. O prato de substância

Depois de uma espera algo exagerada – bem sei que la cuisine est un art, il faut savoir attendre, mas meia hora c’est trop! – chegou o bife de vaca Wagyu com Cantarelos, almôndegas de tutano e o seu molho de vinho tinto. Interessante mas não surpreendente. Explico-me: não é que tudo tenha que ser surpreendente ou reinventado, mas então deveria valorizar o core do prato (como aliás sucedeu nas iguarias anteriores), que neste caso é a qualidade da famosa carne de vaca alimentada a cerveja e massajada ao som de musica clássica… A sinfonia era evidente não havendo nada que destoasse, mas já comi e os outros convivas também beef Wagyu de mais qualidade, pelo que fico com a dúvida se assim fosse realmente todo o apparat montado não valorizaria verdadeiramente os sucos e a essência do sabor desta carne teoricamente tão especial. Acompanhado de um Monte D’Oiro Reserva 2004 que em grande forma o enobreceu, com o seu equilíbrio e os suaves aromas de amoras maduras e damasco, polvilhado de especiarias e pimenta.

A Elsa, fiel desta vez ao seu principio de não comer carne, deliciou-se com um cherne muito saboroso e pouco cozido, apresentando-se em lascas brilhantes e muito bem ligado com raviolis de couve-flor e espuma do mesmo legume – mais que muito bom a aproximar-se do divino…

… Os finalmente

De seguida, um “mozzarela falso” acompanhado de um pesto muito suave, tudo a fazer uma transição perfeita para os doces. (???)

. Os Doces

Para terminar em beleza serviram-nos uma sopinha de ameixa com sorbet de requeijão e ameixa e um bolo de pistáchio com mousse branca, pêssego e geleia, este último o melhor doce que me lembro de comer em Portugal. Espero bem que se mantenha na lista e se torne um clássico, tal como os “fruits rouges en trois étages” sempre foi o ex-libris do L’Ambroisie. Logo a seguir uma delícia de maracujá e chocolate Jivara de cortar a respiração. Tudo isto acompanhado genialmente de um invulgar Muscat de Beaumes de Venize do grande produtor Chapoutier – dificilmente um vinho sabe mais à uva (aroma primário) do que este! No entanto, suficientemente equilibrado para não esmagar a subtileza das extraordinárias sobremesas.

Comecei com esta primeira contribuição para o blogue, porque queria começar positivo e optimista. O facto dos colegas se terem proposto escrever sobre o óptimo jantar que tivemos na Quinta do Monte D’Oiro, obrigou-me a continuar a minha procura do Graal, que já vem de há mais de um ano, e já me estava quase a resignar a escrever sobre um dos 3 restaurantes com uma estrela do Algarve a que fui em Agosto, quando fui de férias consegui ainda encaixar short-notice e com a ajuda do sempre amigo Sr. João à ida deste ano ao Vila Joya. Abençoada decisão! É por isto que valem todos os sacrifícios – isto para mim é a procura de uma obra-prima de arte que seja sublime, ou seja que para os crentes evidencia o toque de Deus, e aos profanos faça prova da existência de algo infinitamente superior em perfeição, espiritualidade e bondade ou compaixão… e que nos chega por um sopro subtil de plenitude que, momentaneamente, nos envolve numa ocasião como esta.

Uma boa amiga ao meu lado replicou que esta mesma sensação de plenitude a tivera ela, há uns dias, quando meio adormecida descansava na praia, e foi envolvida pela natureza e pelos elementos, num maravilhosamente suave fim de tarde deste surpreendente Verão 2009!

Bom… se Alberto Caeiro diz que “…por vezes oiço passar o vento, e acho que só para ouvir passar o vento, vale a pena ter nascido…” também eu, e alguns comigo nesta noite, invocaram o seu Guruji pela sorte de existir ali…

Notas finais

  1. Apresento desde já as minhas desculpas por alguma incorrecção na descrição dos pratos, que as haverá certamente, pois baseadas em impressões sem investigação junto dos mestres criadores, ? ?, e que , não duvido, na optica do produto a ciência contida de cada prato é infinitamente maior que a breve sugestão captada no momento (e aqui reproduzida) poderia relevar.
  2. Uma recomendação: o restaurante devia manter em lista as suas obras primas, o que nos parecer impossível dada a formula de restaurante de pensão completa em hotel que, no essencial, é. Isso fez-me pensar que cada quinta-feira passada lá equivale a um conjunto de árias, algumas cantadas pelo Pavarotti e pela Callas, que nunca mais serão ouvidas! E, pior ainda não se encontram registadas para reprodução futura… Um privilégio para quem estiver lá, com que desperdício para a Humanidade e a gastronomia em Portugal!...

Luis Bento dos Santos

2 comentários:

Nuno Venade disse...

Magnifico post, Caro Luís! Fez-me recordar quase passo a passo um almoço/experiencia gastronomica que tive oportunidade de viver no Vila Joya este mesmo Verão...

Miguel Azevedo Remédio disse...

Excelente post!